quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Retardatário

 

- Fiquei velho na época errada...

- Como?

Toda a minha vida foi assim. Cheguei às diferentes fases da vida quando elas já tinham perdido suas vantagens. Ou antes, de elas adquirirem vantagens novas.

Passei a vida com aquela impressão de quem chegou à festa quando ela já tinha acabado ou saiu quando ela ia ficar boa.

Veja você: a infância. Houve um tempo em que crianças da minha classe eram tratadas como príncipes. Está certo, também apanhavam muito. Mas havia as compensações. Geralmente a avó morava junto e consolava com colo ou doce. E as mães não trabalhavam fora. Favam em casa inventando maneiras de estragar os filhos.

- Você alguma vez teve roupa de veludo?

-Não.

Nem eu. Sou da primeira geração pós-veludo e pré-jeans. Às vezes olho fotografias daquelas crianças antigas com roupas ridículas, golas rendadas, babados e me dá uma inveja. Aquilo sim era maneira de tratar uma criança. Acho que a minha geração deu no que deu porque nunca usou cacho e roupa de veludo. Pode ser...

-Outra coisa: psicologia.

Fui da primeira geração criada com psicologia. Nada de castigo só conversa. Ele rabiscou toda a parede? Está tentando expressar alguma coisa. E usou o batom da mãe? Ih, cuidado, uma surra agora pode traumatizá-lo para sempre. Também fui da primeira geração que não precisou decorar a tabuada e da última antes da calculadora de bolso.

- Resultado: cresci sem a noção de duas coisas importantíssimas: pecado e matemática.

Cheguei tarde à infância e muito cedo à juventude. A revolução sexual começou um dia depois que eu casei com a minha mulher porque era a única maneira de poder dormir com ela. Nós casamos num sábado e a revolução sexual começou no domingo. Ainda tentei desfazer o casamento. "Agora não precisa mais!" Mas estava feito.

Minha adolescência foi um martírio. Lembro-me dela como uma única e interminável tentativa de desenganchar sutiãs. Os sutiãs eram presos atrás de mil maneiras. Ganchos, presilhas, botões, solda. Você precisava de um curso de engenharia para desengatá-los. Uma namorada minha usava um sutiã com uma fechadura atrás. Com combinação, juro! Dezessete para a esquerda, cinco pra direita, rápido que a mãe vem vindo! Você, garoto, nem deve saber o que é sutiã.

Eu pensava ser um jovem adulto sério, engajado nas melhores causas, talvez até um ativista político, um guerrilheiro. Quando cheguei à maior idade, os jovens adultos estavam cuidando das suas carreiras e carteiras de ações. Fui da primeira geração que quando falava em ir para as montanhas queria dizer para o fim de semana. E a última que ainda usou a palavra "alienação", mas aí não sabia bem o que era.

Tudo bem pensei. Vou me preparar para a velhice e os seus privilégios, com minha pensão e meus netos. Mas a Previdência está quase me quebrando e meus netos quando me olham parecem estar me medindo para uma casa geriátrica.

- E há meia hora que eu estou aqui chateando você e Você ainda não se levantou para me dar o seu lugar.

- Qual é, coroa? Essa de dar o lugar pros mais velhos já era...

Crônica de Luiz Fernando Veríssimo, publicado na revista VEJA em 28 DE MAIO de 1986.

Post(324) - Novembro de 2023